quarta-feira, 24 de março de 2010

O Evangelho do Mau Gosto


Devo antes de mais pedir desculpa ao leitor por lhe dar a notícia assim de chofre, sem fazer uso de um único eufemismo recalcitrante a terminar em reticências que seja, mas nestas coisas não há verdadeiramente como amenizar a notícia. Limito-me, por isso, a cumprir o doloroso dever que sobre mim impende de comunicá-la.

Saiba-se, então, que a imagem acima não é uma montagem. Confirma-se mesmo o falecimento de Tareco. Não mais jubilará este terno detentor de amplos bigodes na sala que outrora fora o seu domínio, fazendo o gosto à unha no sofá onde passava pelas brasas à tardinha. Não mais se assanhará contra os condóminos humanos do seu apartamento, os quais, desejando também por vezes cacholar no sofá no seguimento de um opíparo repasto ao sábado, para cima dele se atiravam sem querer. Não mais se vingará no almoço familiar do dia seguinte, saltando para cima da mesa e peidando-se na comida, empestando a atmosfera circundante dos comensais com um odor semelhante ao que se esperaria encontrar na vizinhança de uma posta de pescada na qual alguém tivesse recentemente cagado em abundância. Em consequência, também não mais cruzará aerodinamicamente a atmosfera da sala, propulsionado por um sapato recheado de ossos apontado à velha cicatriz que marcava o sítio onde nos tempos idos da sua curta juventude estivera o seu ainda mais curto piço, aterrando pouco depois no acolhedor sofá de sempre, onde o lume ardente do desejo de vingança se acalmava então um pouco no seu felpudo peito até apenas restar o rubor constante de umas brasas, pelas quais de seguida passava. Nada disto se repetirá, pois Tareco já mia em pastagens mais verdes. Foi bicho fiel. Foi animal estimado. Mas acima de tudo, foi rafeiro.

Claro, não pode deixar de ser notado que Tareco já está sindicalizado na indústria do tijolo há 14 anos e uns meses, e por isso não é segredo nenhum que se estou aqui a escrever sobre ele não será de certeza para comunicar pêsames ou dar informações sobre a data e local das exéquias. Não, o meu propósito é outro bem mais elevado. Encontro-me aqui hoje exclusivamente com o intuito de devolver Tareco, até aqui mero desconhecido bichano, ao justo lugar que deverá ocupar na História doravante: o de conhecido bichano. Com um pouco de paciência e pouco barulho, prometo que tudo o que digo se tornará transparente muito em breve. Atentai ao que se segue.

A explicação do que está aqui em causa exige uma pequena crónica preambular de certo acontecimento peculiar que vivi no cálido fim da tarde de 30 de Agosto de 2008. Estava de férias nessa altura. Mais concretamente, estava no final da minha visita anual ao Jardim Zoológico de Lisboa, já a caminho da saída. E estava bem disposto. A visita tinha superado em muito outras de anos anteriores. Ainda apanhei os tigres, os leões, os saguis, e um casal de pássaros de uma espécie insectívora sul-americana qualquer a foder (todos à canzana, ainda por cima). No cômputo geral, saldo positivo. Mesmo assim continuou aquém do melhor de sempre. Em 2004 vi menos bichos a aviar berlaitada selvagem, é certo, mas como um deles era eu há que acrescentar uma generosa bonificação à classificação final, que ainda hoje lhe faz merecer o lugar cimeiro do pódio. Enfim, adiante. Estava eu a manjar os últimos amendoins do pacotinho caro para caralho, filhos da puta, que vinha quase só com cascas, a caminho da saída, quando dou por mim a passar por aquele mítico local que é de longe o mais intrigante em toda a terra de Sete Rios: o cemitério da bicharada doméstica, ao lado da jaula dos ursos, que nesse ano pareciam estar em vias de agraciar o visitante com uma boa foda mas que depois se ficaram apenas por arrear o calhau, o que também não é mau de ver.

Já desde puto que aquele vale cheio de curiosas campas me alcovitava o interesse mas admito que por ser um sítio dos mais inóspitos que há em termos de cona boa, nunca lhe dei muita importância. Ora, o ano de 2008 marca a diferença porque, pela primeira vez, parei, olhei, e meditei. O observador pouco perspicaz que ignorasse estar diante de um cemitério de animais domésticos decerto seria enganado pelas inscrições nas lápides. Os nomes esquisitos dos defuntos e a frequência dos epitáfios em que se lia “saudade eterna dos donos” facilmente dariam azo a crer que se tratava de um antigo cemitério de pretos. Porém, o erro dissipar-se-ia logo que o olhar recaísse sobre a campa que se vê na imagem acima reproduzida. A última morada de Tareco. E assim aconteceu comigo.

Recordo com vividez a estranha sucessão de pensamentos que me atravessou naquele tragicómico momento. Melhor dizendo, a espécie de bloqueio mental que experimentei, sem igual em toda a minha vida pretérita. Por um lado, aquilo era um túmulo. Havia ali sem dúvida algo de ominoso, como é próprio de todo o jazigo. Algo que convidava à reflexão melancólica e ao piedoso silêncio de respeito imposto pela gravidade metafísica daquela impressão da morte e do destino cunhada em pedra. Sem distinção de qualquer outro túmulo, era um memento mori que me depunha ante a minha própria finitude enquanto animal não menos mortal que qualquer um dos ex-pulgosos e carracentos que serviam agora de lanche a uma classe inteiramente diferente de parasitas, logo abaixo da terra que adubavam.

E no entanto… era o Tareco. O Tareco estava a ser ominoso, tão fofo. Como era possível que não estivesse a partir-me a rir? Os lábios moviam-se, a gargalhada queria sair mas fazia-o apenas a custo e em rasgos intermitentes, como soluços. Não conseguia perceber o que se estava a passar. A situação era, para mim, de todo em todo inédita. Teria de investigar. Contudo, já não teria tempo de fazê-lo ali. Saquei do telemóvel, tirei uma fotografia para mais tarde observar em filosófica contemplação e fui-me embora.

Mas quis o destino que eu entretanto trocasse de telemóvel, visto que aquele era uma bela merda, e assim Tareco acabou por ficar perdido na memória de uma relíquia tecnológica e esquecido da minha. Isto até à semana passada. É que o destino quis também que eu partisse todos os telemóveis que tenho. Quando corro para o comboio, é frequente o meu barrote entesado procurar a cada passada enveredar por sítios estranhos dentro das calças de modo a evitar explodir com a pressão nas veias. Como invariavelmente isto resulta na expulsão à cabeçada do conteúdo dos meus bolsos e respectivo espatifamento no chão, ando sempre a trocar de telemóvel. Até que na semana passada o dia chegou em que mais um se partiu e tive de retornar ao uso do antigo para desenrascar. E eis que num momento de saudosa pesquisa nos ficheiros guardados, entre várias imagens de cus e mamas de gajas às compras, me deparo com a sepultura de Tareco. Somente então, tanto tempo depois, percebi o que significou deveras a morte deste animal.

Sem mais delongas, permitam-me que transmita a revelação: meus caros, se, tal como eu, sempre quiseram saber onde acaba o bom gosto e começa o mau, que cessem de imediato todas as vossas dúvidas. A linha passa exactamente pela tumba do Tareco. Sim, hoje sei por que motivo não consegui partir-me a rir naquele fatídico dia no zoo. Espanta-me apenas que não o tenha compreendido logo. Só o meu subconsciente reconheceu a importância daquela descoberta, obrigando-me a fotografá-la. No Jardim Zoológico, à vista de todos, está nada menos que o elo perdido entre o bom e o mau gosto.

É verdade que, de certo modo, é de bom gosto enterrar o bichano fiel de tantos anos, que tanta alegria deu à família toda. Mostra sensibilidade e é, no sentido mais nobre do termo, humano. Por outro lado, fazer um funeral a um gato ainda por cima chamado Tareco é coisa tão absolutamente ridícula e paneleira que é impossível decidir-se o que pensar ou fazer defronte da sua campa em tamanho A4. Diante da pedra lapidar de Tareco, pergunto eu, qual o procedimento correcto? Rir ou chorar? Seguir em frente ou parar? Apontar com o dedo e chamar outros para verem também ou baixar a cabeça e observar um minuto de silêncio? E isto não são dúvidas que só a mim afligem, meus caros, não se enganem. Toda a gente que por ali passa se põe a olhar de lado à espera de perceber pela reacção dos outros o que fazer. O resultado global é o de uma colecção diária de tansos a entreolharem-se com caras de parvo em completa confusão, todos experimentando aquela peculiar sensação da vontade de rir e o sentimento de culpa que marca o início do mau gosto. Não tendo propensão espiritual para filosofar, claro está, nada mais lhes resta fazer nessa altura senão seguirem até à barraquinha das fotografias e comprarem as fotos com as figuras de otário que fizeram ao pé das lontras no delfinário - ou vice-versa, nem sei -, pois aí tudo é simples e não há dúvidas nenhumas. O delfinário é mesmo só ridículo e paneleiro.

Mas como não podia deixar de ser, o velho Príapo pensou seriamente no assunto, e vai daí anuncio-vos hoje a boa nova associada à anterior descoberta, qual evangelista do animal doméstico. Saiba-se em todo o mundo que Tareco morreu por nós, para expiar o pecado que comete quem se ri das piadas de mau gosto. Tal foi o sacrifício que fez este aparentemente vulgar felis silvestris domesticus, pelo qual todos lhe estamos em eterna dívida. A sua tumba não marca só o horizonte do bom gosto, a partir do qual começa a piada de mau gosto. É também o solo sagrado até onde deverão peregrinar todos aqueles que já espreitaram, por assim dizer, para lá desse horizonte, e que gostaram do que viram.

Todos os apreciadores do mau gosto devem algo a este singular bichano. Ora, como fica provado pelo facto de estar a ler isto que o leitor se inclui nesse número, também tem obrigação de respeitar e honrar a memória de Tareco, pois morreu por si tanto quanto por mim. Aliás, para ser perfeitamente honesto, devo dizer que o sentimento que me invadiu nesse dia ante o túmulo de Tareco culminou, a longo prazo, na criação deste blog. E como se eu não o tivesse criado o leitor não seria leitor, poderia estar neste momento a passear algures pelas ruas da amargura, amofinado, onde acabaria por morrer atropelado por uma velha bêbeda. Por isso, mais do que por tudo o resto, o leitor deve respeito ao referido felino. Tareco está neste preciso momento a salvar-lhe a vida.

Dito isto, proponho que no dia 18 de Dezembro se celebre o Dia Mundial do Mau Gosto, a coincidir com a data do falecimento de Tareco, cuja vida e obra serão um dia matéria obrigatória a leccionar nas escolas primárias de todo o planeta. Teses de doutoramento se escreverão sobre Tareco e o seu túmulo receberá milhares de visitas por ano, se os preços do Jardim Zoológico entretanto deixarem de ser a roubalheira que hoje são, gatunos filhos da puta que não têm outro nome. Isto profetizo eu.

Não me alongo mais, a minha missão está cumprida. Peço apenas a todos os que lerem isto em particular e a todos os que alguma vez se riram de uma piada de mau gosto em geral que se lembrem de Tareco, graças ao qual estão desculpados por o terem feito. E se um dia destes o leitor der por si a transitar pelo Jardim Zoológico, que baixe o olhar sobre este singelo túmulo à beira-passeio plantado, a seguir aos ursos, antes da saída. Encontrará aí o sagrado local do eterno repouso de Tareco, nosso misterioso Salvador, perante o qual ninguém sabe muito bem o que fazer.

Não quero com isto dizer que deverão depor flores na sua laje, claro. Isso seria humanizá-lo e nenhum humano, precisamente por sê-lo, poderia fazer o sacrifício que Tareco fez por nós. Mas seria honroso e de bom tom deixar lá, pelo menos, um coentro.

7 comentários:

  1. Vou lá este domingo. Tens coentros?

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  2. Acho que tenho alguns guardados ao pé dos tomates. Tens é que vir cá buscá-los.

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  3. Fazer uma visita anual ao Zoo parece-me bem, e lembrei-me de lá ir novamente, nomeadamente visitar a peneleirice do Delfinário que, como qualquer pessoa de mau gosto, adoro:P
    Estou profundamente agradecida ao tareco por estar aqui vivinha da silva e prometo comemorar o dia 18 de Dezembro de forma especial e quem sabe rir de uma piada de péssimo gosto (como é meu hábito).

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  4. Lembrei-me agora que andamos com temas muito fúnebres, por que será?:P

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  5. senhor priapo...eu sou doente de priapismo se quiser passar na minha casa pode escolher a hora que quiser...pois esta sarda fica levantada 24h por dia... portanto e so aviar nessa peidola!!! beijos

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  6. Nao tenho priapismo tenho piroca dura mesmo e se vc e sua mulher quiserem passar aqui pra afagar é só falar, seu paneleiro.

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